terça-feira, 27 de novembro de 2018


POPULISMOS, AMEAÇAS E SOMBRAS SOBRE O FUTURO

Assistimos, neste início de século, a um fenómeno generalizado e irreversível, em relação ao qual sobram dúvidas quanto às suas reais consequências para os povos, até onde alastrará, como e quando será contido e ultrapassado. Refiro-me à proliferação de regimes neo-fascistas de cariz populista, associada à ascensão de ideologias racistas e xenófobas caucionadas pela direita radical, tradicionalmente próxima desses regimes. O fenómeno, variando em forma e intensidade, tem-se instalado em países como os Estados Unidos, a Rússia, a Itália, a Hungria, as Filipinas, a Turquia, a Arábia Saudita e tantos outros e ameaça países como o Reino Unido, a França, a Alemanha, a Holanda e muitos mais.
Por estes dias, o fenómeno está a chegar ao Brasil. Efetivamente, o povo brasileiro parece não querer libertar-se do estigma político dos países latino-americanos e volta a mergulhar num modelo de regime ditatorial a que muito raramente algum desses países escapou nos últimos cem anos e a que o Brasil também esteve sujeito entre 1964 e 1985. A maior parte das ditaduras impõe-se através de golpes militares, como fizeram Pinochet no Chile ou Franco em Espanha, ou através de revoluções, como fizeram os bolcheviques na Rússia, ou Mao Tse tung na China. No entanto, sobram exemplos, na História recente, de regimes autoritários resultantes de eleições mais ou menos livres, sendo o caso mais conhecido o do próprio Hitler. Relativamente ao Brasil, tudo leva a crer que, cansados de uma democracia com apenas 30 anos, uma maioria significativa de brasileiros tenha decidido trocá-la por promessas de um justicialismo que não passa de uma aplicação arbitrária da lei e de um securitarismo que se limita a combater a violência com mais violência, criando uma espiral de violência gratuita, sendo ambos absolutamente contrários aos valores e práticas da democracia e do estado de direito.
A eleição de Bolsonaro é, pois, claramente, um sinal dos tempos que vivemos. Aliás, a forma como chega ao poder é, em alguns aspetos, muito semelhante à de Trump. Tal como ele, parte muito atrás: um ano antes das eleições, ninguém vaticinaria a sua vitória. Tal como ele, recorre às redes sociais como instrumento principal de campanha e à manipulação do eleitorado mediante a criação e divulgação sistemática de notícias falsas. Tal como ele, apresenta-se com um discurso populista, limitado aos lugares comuns mais simplistas e prometendo a moralização da atividade política. Mais do que ele, ameaça todos os que ousarem colocar-se no seu caminho com um discurso carregado de ódio. Tomando estes factos como premissas, podemos facilmente concluir que, tal como Trump frustrou as expectativas dos que não acreditavam que ele cumprisse as ameaças que semeou a esmo, também os brasileiros podem estar cientes de que Bolsonaro cumprirá, seguramente excederá, as ameaças que tem vindo a proferir com a maior desfaçatez e impunidade. É por isso que os brasileiros, todos, mesmo os que votaram nele por convicção, podem e devem estar muito preocupados. Ele e a sua “tropa” vão cumprir as ameaças. Se o Supremo Tribunal impugnar a sua eleição, nem será preciso mandar tropas para o fechar, diz um dos seus filhos: basta um soldado e um cabo. Através de um vídeo, perante milhares de apoiantes em comício, Bolsonaro vocifera: “A faxina agora será muito mais ampla. Ou vão pra fora ou vão pra cadeia. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria. A petralhada vai ser varrida”. O chorrilho de ameaças é infindável, cada uma mais execrável do que a outra. Duvidar, um pouquinho que seja, que este ex-militar, em tempos afastado da instituição por ser acusado de planear ataques terroristas, vai cumprir estas promessas, ou é ingenuidade ou pura estupidez. Como também o será acreditar que poderá alguma vez moralizar seja o que for na política alguém que viveu sempre de cargos políticos e à custa deles passou de pé descalço para dono de uma fortuna muito considerável. No caminho até se tornarem multimilionários reside, aliás, uma das diferenças entre Bolsonaro e Trump. No entanto, a diferença entre eles que mais deve preocupar os brasileiros tem a ver com os próprios países. Os Estados Unidos têm uma democracia bicentenária, com uma tradição enraizada de separação de poderes e mecanismos eficazes de controlo institucional; o Brasil tem uma democracia imberbe e mal consolidada, em que os poderes se imiscuem e promiscuem, como ficou provado na forma como Dilma Rousseff foi afastada e como supostos corruptos com poder condenam supostos corruptos apeados do poder. Os Estados Unidos têm um sistema partidário consolidado que garante uma oposição forte e que se apresenta sempre como alternativa real à tomada de poder; o Brasil tem um sistema partidário caótico com partidos da direita e do centro, populares e liberais, alguns com bastante expressão eleitoral no passado recente, mas que praticamente desapareceram do mapa e capitularam a favor de Bolsonaro. Nestas condições, para se tornar um ditador, basta ao novo presidente meter o PT na cadeia, como ameaçou, pois a direita e o centro já ele tem no bolso e conta com o importante apoio das várias igrejas: católica, evangélica e outras de menor dimensão como a IURD.
Perante este cenário, e sem querer ser catastrofista, a democracia brasileira corre sérios riscos de se transformar numa ditadura terceiro-mundista. Sendo as eleições livres a expressão máxima da democracia, será que os brasileiros poderão voltar a usufruir delas nas próximas décadas?

José Júlio Campos
jjfcampos@hotmail.com
pensarnotempo.blogspot.com



MESTRES DA TRANQUIBÉRNIA

Num Estado de Direito, a forma de ocupar os cargos públicos, seja por eleição, por nomeação ou por concurso, está prevista na lei, nomeadamente na Constituição, como acontece no nosso país. À partida tudo deveria ser pacífico e transparente, sem celeumas ou suspeitas, não fosse a lamentável tendência de alguns políticos encartados para transformarem estas ocasiões em oportunidades de autopromoção, recorrendo à arte da tranquibérnia.  Faz parte do folclore que, chegado o momento de proceder à nomeação do titular de um cargo público, os interesses políticos, económicos ou corporativos entrem num modo de frenesim, cujo grau de histeria varia em função da existência ou não de assuntos mais espetaculares para a comunicação social explorar, como sejam catástrofes, crimes de faca e alguidar, palermices do futebol ou mochilas abandonadas no Metro, isto segundo a bitola imposta pela CMTV e que vai sendo fielmente seguida pelos restantes canais.
Recentemente, o país político e judicial viveu uma grande excitação com a nomeação do novo Procurador Geral da República (PGR) que, por estes dias, inicia o seu mandato, uma vez terminado o da Procuradora cessante, Joana Marques Vidal. Tal como estabelece a Constituição, no nº 3 do artigo 220, “o mandato do Procurador-Geral da República tem a duração de seis anos”. Até há um ano atrás, era consensual que, terminado o seu mandato, Joana Marques Vidal abandonaria naturalmente o cargo, como ela própria já tinha afirmado, e outro se seguiria. Nunca, em ocasiões anteriores, desde que esta regra constitucional está em vigor, fosse com Souto Moura ou Pinto Monteiro, se colocou sequer em discussão pública a possibilidade de uma recondução no cargo, pura e simplesmente porque ela não está prevista na lei. A questão que se impõe, então, é a de saber por que cargas d’água, desta vez o tema gerou tanta volúpia, sobretudo nos partidos da direita. A resposta parece, por demais, evidente: porque, a julgar pelas pressões e pelas reações, existem interesses políticos e/ou interesses pessoais na nomeação do PGR. Desde logo, porque sendo essa nomeação uma competência do Presidente da República, que tem sempre a última palavra face à proposta do Governo, e que está totalmente fora da esfera de competências dos partidos e da Assembleia da República, só esses interesses podem explicar a pressão inaceitável colocada pelos partidos da direita, sobretudo pelo CDS, para que Joana Marques Vidal fosse reconduzida, por melhor que tenha sido o seu desempenho. A pressão de Rui Rio, de tão suave, ficou-se mesmo pela tão desajeitada como incompreensível sugestão de colocar como alternativa à recondução da Procuradora cessante uma figura exterior ao Ministério Público. É com propostas deste jaez que Rui Rio dá gás a Montenegro e a Passos Coelho, líderes dos outros dois PSD’s que existem atualmente. E que só não são quatro porque Santana Lopes decidiu dar outro nome ao seu!
Inaceitável, também, foi o facto de alguma comunicação social se ter constituído como um poderoso lóbi a favor das pretensões desses partidos, não se coibindo mesmo de anunciar um imaginário acordo entre Costa e Marcelo para manter a Procuradora no cargo como um facto consumado. Afinal o oráculo, escarrapachado com pompa e circunstância na primeira página de um jornal de referência como é o Expresso e replicado em todas as caixas de ressonância da direita como o Sol, o Observador e os vários canais privados de televisão, veio a revelar-se ridícula e escandalosamente falso, mostrando à saciedade que a comunicação social portuguesa não é séria nem de confiança, limitando-se a servir os interesses dos grupos económicos e políticos seus proprietários e esquecendo totalmente os interesses de quem os vê, lê e ouve e tem o direito de ser informado com isenção.
No entanto, ainda não iríamos ficar por aqui! A cereja no topo do bolo de mais esta lamentável cena da política portuguesa chegou com as reações à decisão do Presidente da República. Os responsáveis pela indicação de Marques Vidal, Paula Teixeira da Cruz e Passos Coelho, acolitados por cópias rascas de Marcelo, como Marques Mendes ou Ferreira Leite, foram vítimas de uma grave recidiva de ressabiamento e desataram a lançar o labéu sobre a decisão do Presidente da República, qualificando-a de “indecente”, “com motivos escondidos”, “fantochada” e outros mimos do género. Um autêntico manual de chicana política.
Mas houve mais. O próprio mestre, de quem Passos bebeu a arte da chicana, Cavaco Silva, também não se inibiu de lançar a sua alicantina para o terreno. Com uma semana de atraso, é certo, como convém a um ser que vive em estado de mumificação e funciona ao ralenti, mas, ainda assim, com o assinalável ferrete de um mestre da tranquibérnia que não deixa os seus créditos por mãos alheias. Pusilânime, atribuiu a decisão ao Governo e sibilino, qualificou-a de “muito estranha”. Marcelo reagiu como uma pessoa séria, limitando-se a lembrar o desmemoriado e a assumir que a nomeação de uma nova Procuradora foi uma decisão sua. Até custa a crer que o atual Presidente da República alguma vez tenha feito parte do PSD.

José Júlio Campos
jjfcampos@hotmail.com
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VIAGEM A ITÁLIA

No passado mês de agosto fiz um circuito por Itália, durante uma semana, que me permitiu visitar cidades como Veneza, Florença e Roma, entre outras de menor dimensão.
A importância histórica e cultural de Itália prende-se com o facto de nela encontrarmos uma grande parte das origens da civilização ocidental a que pertencemos. A civilização romana transformou, integrou e aculturou um conjunto de culturas que, desde os primórdios da História, viviam nos vastos territórios que circundam o Mediterrâneo, criando um concentrado a que chamamos civilização ocidental. As culturas greco-romanas e judaico-cristãs foram os pilares que sustentaram uma civilização cujas origens etruscas se foram misturando, ao longo dos séculos, com culturas tão diversas como a persa, a egípcia, a árabe ou a bizantina. Essa amálgama de culturas encontra-se bem evidenciada no património arquitetónico e artístico de toda a Itália, sendo a cidade de Roma, fundada há quase três mil anos, o seu epicentro. Após a queda do império romano do ocidente, no séc. V, e da fragmentação política da Península Itálica em vários reinos e repúblicas ao longo de mais de mil anos, a influência de Roma sobre a Europa ocidental manteve-se, enquanto centro do cristianismo. No séc. XV, a partir de Florença, eclodiu o movimento renascentista que teve uma influência determinante em toda a cultura ocidental, com especial incidência nas artes clássicas – a pintura, a escultura, a arquitetura, a música, a literatura, o teatro…
A Itália, enquanto unidade territorial e política, isto é, como estado/nação, data apenas da segunda metade do séc. XIX, entrando no séc. XX como um dos países mais jovens e politicamente mais complexos e conturbados da Europa. No entanto, mesmo depois de ter estado grandemente envolvida em duas guerras mundiais, a Itália continuou a exercer um papel preponderante na cultura ocidental, sobretudo na segunda metade desse séc. XX.
Pessoalmente, da minha experiência como jovem estudante, nos anos oitenta, recordo a importância que, principalmente, o cinema e a literatura desse país tinham sobre o mundo universitário, em Portugal e não só. Realizadores como Fellini, Tornatore, Antonioni, de Sica, Visconti, os irmãos Taviani, Pasolini e tantos outros fizeram do cinema italiano o melhor que alguma vez se produziu. Escritores como Alberto Moravia, Italo Calvino, Antonio Tabucchi ou Umberto Eco, para citar apenas alguns dos que li, são absolutamente fantásticos e incontornáveis na grande literatura contemporânea.
Esta viagem a Itália permitiu-me, pois, conhecer alguns dos locais onde teve origem uma boa parte da nossa cultura comum e evocar a importância que algumas figuras da cultura italiana mais recente tiveram sobre a minha formação pessoal. Além disso tive, também, a oportunidade de verificar que a Itália de hoje é um país bastante fragmentado e extremado politicamente, que vive mais um dos muitos períodos conturbados da sua história. A manifesta tendência racista e xenófoba do atual governo de coligação entre populistas e extrema-direita manifesta-se diariamente na polémica dominante sobre a forma de lidar com os refugiados que continuam a atravessar o Mediterrâneo. A par dos acidentes que ultimamente têm penalizado a Itália, a questão dos refugiados é o grande tema da atualidade política e mediática. Mas percebe-se que a questão das relações com a União Europeia, sobretudo à medida em que nos aproximamos das eleições para o Parlamento Europeu, será também um tema latente e potencialmente fraturante.
Desta viagem resultou a ideia de que tanto o humanismo renascentista, que foi fulcral para o desenvolvimento do iluminismo e da reflexão filosófica que levaram à conquista dos direitos humanos, como o papel pioneiro da Itália na criação e construção da União Europeia, não passam, hoje, de recordações mais ou menos gratas ou fossilizadas, conforme a perspetiva com que os italianos os olham. No entanto, apesar da encruzilhada em que se encontra, a Itália de hoje, sendo uma caricatura dos seus tempos áureos, não deixa de ser herdeira de um passado grandioso e fascinante e que, por isso mesmo, vale a pena conhecer.


José Júlio Campos
jjfcampos@hotmail.com
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A OPÇÃO DE PARIR UM RATO

Afinal, quanto é que o Estado já “enterrou” na banca? Não se sabe bem ao certo. É que mesmo as contas públicas, supostamente mais rigorosas, objetivas e transparentes, deixam muito a desejar. Os números com que o INE ou o Eurostat nos vão enrolando resultam da opção por determinados conceitos macroeconómicos que permitem maquilhar orçamentos “à vontade do freguês”. É tudo uma questão de critérios e respetivas escolhas. Certo é que a banca se tornou o maior sorvedouro das receitas do Estado. Os últimos dados divulgados pelo INE apontam para 17 mil milhões de euros, nos últimos dez anos, para o BPN, o BES, o Novo Bando(!), o BANIF e a CGD.
Uma das consequências diretas e imediatas da opção por esta política de salvação de bancos foi o aumento acelerado da dívida pública que passou de 120 mil milhões de euros, em 2008, para 240 mil milhões, atualmente. Ou seja, duplicou. Em percentagem do PIB, passou de 70%, em 2008, para um record de 130%, em 2014, em pleno reinado da troika, situando-se, atualmente, em cerca de 125%. O serviço da dívida, isto é, os juros que o país paga aos credores, situa-se entre os 7 e os 8 mil milhões de euros anuais, ou seja, tanto como o que no Orçamento de Estado é destinado à Saúde e à Educação, que são as suas maiores rubricas. Em termos relativos, de todos os países do Eurogrupo, somos o que paga mais juros pela dívida.
O peso da dívida funciona, pois, como o principal entrave ao controlo do défice e o principal travão ao investimento público. “Bastava” uma redução do serviço da dívida em 50% para que o país pudesse dispor de mais de 4 mil milhões de euros por ano, para investir no SNS, na escola pública, nos transportes públicos que estão à beira do colapso, como a CP, segundo rezam as últimas notícias, etc. O problema é que nem 5, quanto mais 50! E porquê? Porque isso só seria possível em resultado de uma renegociação da dívida que tanto o anterior, como o atual governo se têm recusado sequer a tentar. Em vez disso, o governo do PS, à semelhança do anterior, continua mais interessado em servir os interesses dos “mercados financeiros”, representados pelo FMI e pelo sistema bancário internacional do que em travar a destruição do Estado Social, iniciada, desejada e promovida pelas políticas neoliberais que têm sido implementadas na Europa nos últimos 30 anos. Se alguém tinha dúvidas relativamente à ideologia do PS, em matéria de política económico/financeira, Mário Centeno tratou de as dissipar quando, recentemente, reiterou a tese tão querida a Passos Coelho de que a dívida pública portuguesa é sustentável. Tese essa, aliás, vasta e categoricamente negada por economistas de todos os quadrantes políticos e tão insuspeitos como a ultraneoliberal Manuela Ferreira Leite. 
A esperança alimentada em alguns setores da esquerda portuguesa, em finais de 2015, de que ainda restava na Europa um partido socialista realmente socialista vai-se, assim, esfumando, paulatinamente, à medida que vemos o “ratito” das “reversões efetuadas” a sair da montanha das “expectativas criadas”. Enquanto líder do Eurogrupo, Centeno é hoje o rosto dos agiotas internacionais, impondo a sua lei a um governo onde o Ministro da Saúde vai de forma acabrunhada anunciando investimentos que sabe de antemão virem a ser abortados por falta de despacho das Finanças; um governo que, depois de ver o OE para 2018 ser aprovado, se borrifa para o compromisso assumido pelo seu grupo parlamentar, e que permitiu essa aprovação, de contar todo o tempo de serviço prestado pelos professores. Um governo, pois, que, no essencial, segue as máximas do anterior: governar em função do défice, indo mesmo além das metas impostas por Bruxelas, a não ser que seja necessário salvar mais algum banco afundado por “gatunos”; anunciar, pomposa e diariamente, planos e projetos de investimento nos serviços públicos, previamente destinados a um adiamento sine die, por falta de autorização das finanças; recorrer sistematicamente a um discurso falacioso para acicatar a opinião pública contra uma classe profissional, como fez Costa quando recorreu ao miserável falso dilema de colocar em alternativa única a satisfação das legítimas reivindicações dos professores com a urgente remodelação do IP3; manipular essa mesma opinião pública, fazendo crer que investir na Saúde, na Educação, na Segurança Social ou noutros setores do Estado é incompatível com finanças públicas equilibradas, quando é evidente que foram os desvarios da banca, sobretudo da privada, os grandes responsáveis por esse desequilíbrio. Enfim, o governo do PS rege-se pela mesma cartilha neoliberal que levou ao quase desaparecimento de outros partidos socialistas por essa Europa fora e à perigosa ascensão da direita e da extrema-direita populista. Governar é uma questão de fazer opções e as do atual governo começam a ser muito claras.   

José Júlio Campos
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COINCIDÊNCIAS… OU TALVEZ NÃO

Cada vez mais esquecida dos horrores de duas guerras mundiais, ocorridas na primeira parte do séc. XX e separadas por apenas 20 anos, a Humanidade trilha caminhos de uma cada vez maior desumanização, traduzida no aumento substancial de seres humanos cujos direitos fundamentais não passam de uma longínqua miragem.
O alastrar das desigualdades entre países ricos e países pobres com o consequente aumento de uma enorme massa de indivíduos reduzidos à mais extrema miséria material, o real e constante risco de vida em zonas de guerra permanente, as perseguições e atentados de origem étnica ou religiosa, associados à informação globalizada que hoje existe e à natural motivação de qualquer ser humano para satisfazer necessidades tão básicas como a de se alimentar ou de viver com um mínimo de segurança, potenciam a pressão migratória que, sobretudo nos últimos 30 ou 40 anos, se tem acentuado sobre os países ricos do hemisfério norte.
A resposta destes países a esse fenómeno migratório tem-se vindo a deteriorar nos últimos anos, graças ao crescimento daquilo que podemos apelidar de “egoísmo social radical”, traduzido numa crença falsa e injustificada, disseminada a partir de alguns quadrantes políticos, segundo a qual esse fenómeno migratório é responsável pelas “nossas” crises económicas, pelo “nosso” desemprego, pela “nossa” insegurança. A construção desse egoísmo social obedece a motivações ideológicas bem identificadas, presentes em organizações políticas de direita ou de extrema-direita, com matrizes nacionalistas, racistas ou xenófobas. Não é por acaso que assistimos, sobretudo nos países ocidentais, a uma ascensão tão real quanto perigosa dessas ideologias que misturam a defesa de políticas económicas protecionistas com a defesa da concessão de direitos e serviços sociais apenas aos cidadãos nacionais “de raiz”, o anti-islamismo com a recusa da ajuda aos refugiados.
A União Europeia tem, hoje, uma política para os refugiados que não respeita a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, aprovada em 1951, e que se afasta cada vez mais dos valores e dos princípios consignados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, a qual garante, no seu artigo 14º, nº 1, que “toda a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e de beneficiar de asilo em outros países”. Alguns países desrespeitam completamente esses princípios, nomeadamente a Polónia, a Hungria, a Áustria, a Bulgária ou a Eslováquia, países onde a direita e a extrema-direita governam ou têm um peso político cada vez maior. A Itália, desde que passou a ser governada por uma coligação constituída pela Liga Norte (de extrema-direita) e o Movimento 5 Estrelas (populista), recusa receber refugiados; recentemente, um barco com mais de seiscentas pessoas, rejeitado pelo governo italiano, acabou por ser acolhido em Espanha, curiosamente por um governo socialista que acabou de substituir um governo de direita. Os atuais líderes da União Europeia, Merkel e Macron, não conseguem levar sequer os seus países a uma política assertiva no que respeita aos direitos dos refugiados, em parte devido à crescente ameaça eleitoral de partidos xenófobos e racistas como a Alternativa para a Alemanha ou a Frente Nacional. Nos Estados Unidos da América, desde a chegada ao poder do populista de direita, Trump, a situação tem vindo a agravar-se de forma intolerável. As famílias que tentam entrar no país, provenientes sobretudo da América Central e do Sul, são imediatamente separadas. Os adultos são presos em autênticos campos de concentração; as crianças são metidas em jaulas de metal e alimentadas com sacos de batatas fritas, tendo por cama umas folhas de jornal. Esta situação degradante envergonharia até um chimpanzé, mas não foi suficiente para envergonhar Trump, nem um terço dos americanos. Internamente, depois das críticas que recebeu, lá decretou que as famílias de imigrantes não fossem separadas, mas que continuassem a viver em campos de concentração. A nível internacional, amuado com as acusações vindas de vários quadrantes, o melhor que conseguiu foi decretar a saída dos Estados Unidos do Conselho dos Direitos Humanos da ONU, justificando-a com uma alegada política anti-israelita por parte dos restantes membros desse organismo.
Sim, a direita e a extrema-direita estão, novamente, a ganhar um enorme e perigoso poder no mundo ocidental, sobretudo na Europa e em todo o continente americano. Sim, muitos direitos humanos estão a ser desprezados e espezinhados como nunca tinham sido após a Segunda Guerra Mundial. E, sim: a correlação entre estes dois fenómenos não é uma mera coincidência.


José Júlio Campos
pensarnotempo.blogspot.com


UM CONFLITO SEM FIM À VISTA

O Próximo Oriente é uma das regiões mais problemáticas do planeta, desde os primórdios das civilizações. No Antigo Testamento são relatados inúmeros episódios da história dos povos que foram deambulando por esses territórios. Desses povos restam, ainda, os israelitas e os palestinianos. Judeus, os primeiros, árabes e maioritariamente muçulmanos, os segundos, nunca tiveram uma convivência pacífica, nem entre si, nem com outros povos que, ao longo dos tempos, foram controlando essas regiões, como os persas, os romanos, mais tarde, ou os franceses e os ingleses, mais recentemente.
Das convulsões permanentes e imemoriais que fizeram desse território uma terra disputada por vários povos e religiões, mas a que nenhum pode, em rigor, chamar sua, chegou-se à atual situação de um conflito sem fim à vista. Na contemporaneidade, o conflito reacendeu-se quando entre os judeus, espalhados pelo mundo em virtude de várias diásporas ocorridas ciclicamente, (das quais se destacam a que foi provocada por Nabucodonosor, há cerca de 2500 anos e a que foi causada pelos romanos, há cerca de 2000 anos), ganhou força o movimento sionista que teve como objetivo primordial o regresso do povo de Israel à “terra prometida”, ao sagrado monte Sião, onde tinha existido o Templo de Jerusalém. No início do séc. XX, esse território, que se encontrava sob o domínio dos franceses, nas zonas mais a norte, próximas da Síria, e dos ingleses, nas zonas próximas da Jordânia e do Egito, era habitado por vários povos, maioritariamente os palestinianos.
Após a 2ª guerra mundial, e como uma espécie de compensação pelos horrores infligidos aos judeus pelos nazis, a comunidade internacional, sob a égide da recém-criada ONU, entendeu satisfazer os velhos anseios dos sionistas. Assim, através da resolução 181, aprovada em 29 de novembro de 1947, a ONU procedeu a uma partilha desse território entre os palestinianos que ficavam pela Cisjordânia, a Faixa de Gaza e uma pequena região a sul do Líbano, e os israelitas que podiam regressar e ocupar o restante território. A cidade mais disputada do planeta, Jerusalém, ficaria sob administração da ONU e nela continuariam as três religiões monoteístas a ter os seus lugares de culto e a podê-lo praticar em liberdade e segurança. No entanto, esta resolução não chegou praticamente a ser implementada, pois os diferendos entre árabes e judeus relativamente a esta partilha iniciaram-se de imediato, dando origem a um conflito que tem tido inúmeros episódios bélicos, uns mais graves do que outros, ao longo dos últimos 70 anos. O mais relevante desses episódios foi a chamada “guerra dos seis dias”, em junho de 1967, em que o poder militar, sobretudo aéreo, dos israelitas impôs aos países árabes envolvidos, principalmente ao Egito, à Jordânia e à Síria, uma pesada derrota, com consequências desastrosas, sobretudo para os palestinianos que viram os seus territórios ser ocupados por Israel. Essa ocupação dura até aos dias de hoje, apesar da permanente revolta dos palestinianos e das resoluções da ONU, nomeadamente da célebre resolução 242 que impõe, taxativamente, a Israel a obrigação de abandonar os territórios árabes ocupados e que Israel nunca cumpriu. Ao invés, tem vindo a expulsar os palestinianos de algumas das regiões que lhes tinham sido atribuídas, transformando-as em colonatos judeus e reprimindo de forma extremamente violenta toda e qualquer tentativa dos palestinianos em fazer valer os seus direitos, quer como povo, quer como seres humanos. Uma grande parte dos palestinianos, sobretudo nos territórios ocupados das regiões de Gaza e de Ramallah, na Cisjordânia, vivem hoje em autênticos campos de concentração, dentro das suas próprias terras, vigiados pelos soldados israelitas. As forças em confronto são, claramente, desproporcionadas. De um lado temos os israelitas, dotados de grande poder militar, alimentado pela riqueza que os judeus da diáspora lhes fazem chegar generosamente; do outro lado temos um povo pobre, com pouco e rudimentar armamento, tantas vezes dividido em termos de liderança. É por isso que a luta palestiniana pela sua liberdade tem oscilado entre duas estratégias igualmente condenadas ao fracasso, embora por razões diferentes: os ataques terroristas contra alvos israelitas, que acabam por gerar antipatia aos olhos da opinião pública internacional, e as célebres intifadas, protagonizadas por adolescentes revoltados que atacam à pedrada soldados israelitas armados até aos dentes e que não hesitam em disparar sobre eles a matar. A estratégia que devia resultar, mas na qual já ninguém acredita, seria obrigar coercivamente Israel a cumprir a resolução 242 da ONU. Acontece que esta organização é, hoje, uma instituição desacreditada e inócua, tantas vezes instrumentalizada ao serviço da vontade e dos interesses dos cinco países com direito de veto. Além disso, decisões estúpidas, como a que foi recentemente tomada por Trump, de mudar a embaixada norte americana para Jerusalém, dando força à ambição israelita de fazer dessa cidade a capital do país, só servem para lançar gasolina num incêndio já bem ateado. Mas outra coisa não seria de esperar daquele que é atualmente o maior incendiário à face da terra. Problema maior será se o incêndio alastrar a outras regiões e países do Médio Oriente, como a Síria (já numa guerra civil), a Jordânia, o Iraque ou o Irão. E o referido incendiário também tudo está a fazer para que isso aconteça.


José Júlio Campos
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DUZENTOS ANOS DE KARL MARX

Há duzentos anos, mais precisamente em 5 de maio de 1818, nasceu, na Alemanha, uma das figuras mais importantes da História contemporânea – Karl Marx. Independentemente dos preconceitos, nascidos geralmente da ignorância, que este pensador continua a suscitar, é um facto que nenhum outro marcou tanto a história social e política dos povos, nos últimos cento e cinquenta anos. O seu pensamento influenciou uma quantidade enorme de movimentos políticos, muitas vezes discordantes entre si, tantas vezes inconsequentes e outras tantas com resultados, no mínimo, duvidosos e discutíveis. Malgrado toda a controvérsia que a aplicação prática das suas teorias possa legitimar, o facto é que, ao longo do séc. XX, foi surgindo, praticamente em todos os países do mundo, com maior ou menor afirmação e sucesso, um conjunto de forças políticas inspiradas no pensamento de Marx e, por isso mesmo, autodesignadas como marxistas.
Sindicatos, partidos políticos, escolas de arte, movimentos culturais nas mais diversas áreas, inspiraram-se nas teses de Karl Marx, constituindo-se como agentes dinamizadores e transformadores da sociedade. Esse era, aliás, um dos objetivos preconizados pelo filósofo e por ele afirmado na 11ª e última das suas “teses sobre Feuerbach”, na qual sintetiza, no fundo, as dez anteriores: “Até hoje, aquilo que os filósofos fizeram foi interpretar o mundo de maneiras diferentes; é necessário, agora, transformá-lo”.
Esta tese pode ser entendida como o ponto de fusão das teorias desenvolvidas nas diversas dimensões do pensamento a que se dedicou: a filosofia, a economia e a política. No plano filosófico, Marx evoluiu de um pensamento marcado pelo idealismo de Hegel e Feuerbach, a partir do qual forjou o conceito de materialismo histórico, para o conceito de materialismo dialético que constitui uma viragem significativa na sua conceção da História, do indivíduo e da sociedade. Afirma a “praxis” como base do pensamento, critério de verdade no conhecimento e fator determinante de transformação do real. No plano social e político, Marx afirma que a história de toda a sociedade até aos nossos dias não é mais do que a história da luta de classes, a qual explica as transformações dos sistemas sociais do passado e justifica as necessárias transformações no sistema social da época. Os modos de produção esclavagista, feudal e capitalista resultam da evolução económica da sociedade, baseada no processo dialético da luta de classes. Todas as sociedades assentam, pois, sobre o antagonismo entre classes opressoras e classes oprimidas. No séc. XIX, a classe dominante era a burguesia capitalista, vencedora declarada do sistema feudal medieval. No entanto, a burguesia dessa época continha, segundo Marx, contradições profundas que precipitariam a sua destruição. No “Manifesto do Partido Comunista”, Marx e Engels afirmam que “a burguesia não só forjou as armas que lhe dão a sua morte, como produziu, também, os homens que virão a empunhar essas armas: os trabalhadores modernos – os proletários”. E repare-se na pertinência atual da seguinte análise, produzida na sequência da afirmação citada: “Na mesma medida em que a burguesia, isto é, o capital, se desenvolve, desenvolve-se o proletariado, a classe dos trabalhadores modernos, que só subsistirão enquanto encontrarem trabalho e que só encontrarão trabalho enquanto o seu trabalho aumentar o capital. Estes trabalhadores, que têm de vender-se pedaço a pedaço, são uma mercadoria como qualquer outro artigo comercial, sujeito por isso a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as flutuações do mercado”. Acredita Marx que a tomada de consciência da sua força levará o proletariado a vencer a luta com a burguesia, na medida em que, por ser grandemente maioritária é uma classe realmente revolucionária, capaz de aniquilar a classe dominante e, simultaneamente, acabar com a sociedade de classes.
A terminar, cumpre-me alertar o leitor para o facto de a complexidade filosófica do pensamento de Marx não ser compaginável com análises breves e simplistas como acontece num texto desta natureza. O objetivo não é, pois, o de “explicar” o pensamento de Marx, mas despertar as mentes, sobretudo as mais jovens, para a necessidade de estudarem os seus conceitos e teorias e a sua importância no mundo contemporâneo. À semelhança de todos os pensadores, Marx pensou numa época e para uma época, aquela em que viveu, marcada pela revolução industrial e pela ascensão do capitalismo, com as suas contradições e aspetos fortemente negativos. No entanto, e até porque o domínio da classe capitalista se tem acentuado com base no desenvolvimento de mecanismos de dominação que Marx, à época não podia prever, as suas teorias continuam, no essencial, adequadas e capazes de nos permitir compreender as relações e os movimentos sociais e políticos do séc. XXI. A categorização por ele idealizada para a compreensão da História e da sua evolução continua, pois, a ser um instrumento de análise útil, embora não de fácil utilização.


José Júlio Campos
pensarnotempo.blogspot.com